“Pensava que estavas em silêncio e que era minha mãe a falar. Entretanto, era por meio dela que Tu falavas e eu, filho da Tua serva, desprezando-a, desprezei a Ti. Mas eu não sabia e me precipitava tão cegamente que, estando em meio aos meus amigos, envergonhava-me por ser menos indecente que eles quando os ouvia gabarem-se de sua devassidão. Sim! E quanto mais se gabavam, mais se rebaixavam. Eu sentia prazer não somente nas obras da carne, mas nos louvores. O que é digno de censura senão o vício? Fiz-me pior do que era antes para que não fosse censurado e, quando não havia cometido pecado semelhante ao dos outros, dizia ter feito o que não havia feito para que não fosse desprezado por ser mais inocente que eles e para não cair em seu conceito por ser mais casto.”
Capítulo III;
Livro II;
Confissões de Santo Agostinho.
Não fora surpresa que tenha me distraído com vaidades e me afastado da Tua presença, ó meu Deus, quando homens foram colocados diante de mim como modelos, os quais, com algumas atitudes, cometeram erros, crueldades e, ao serem censurados, se envergonharam. Porém, será que quando contavam acerca da própria vida cheia de confusão, com discurso rico e fluido, sendo elogiados, se gloriavam? Tu vês tais coisas, Senhor, e te manténs em silêncio; longânimo, cheio de misericórdia e verdade. Ficarás em silêncio para sempre? Mesmo agora, Tu retiras desse horrível abismo a alma que te buscar, sedenta pela Tua alegria, cujo coração disse a Ti: contemplei a Tua face. Tua face, Senhor, buscarei. Pois afeições obscuras causam afastamento de Ti. Não é pelos próprios pés, ou ao mudar de lugar, que o homem te abandona ou retorna a Ti. Não procurava o filho pródigo por cavalos, carruagens, navios, não queria ele voar com asas visíveis ou aventurar-se em uma jornada em que andasse com as próprias pernas, apenas para que em um país distante, vivendo uma vida desordenada, desperdiçasse tudo o que a ele destes em sua partida? Foste um Pai amoroso quando deste, mas foste ainda mais quando o filho retornou sem nada. A cobiça, isto é, as afeições obscuras, são a verdadeira distância da Tua face.
Contemple, ó Senhor Deus, paciente como és, quão cuidadosamente os filhos do homem observam as regras convencionais das letras e sílabas vindas daqueles que falaram antes deles, negligenciando a aliança eterna da salvação perene vinda de Ti. De maneira que um professor ou um aluno das leis gramáticas serão mais ofensivos se omitirem a grafia de uma letra em "ser umano", a despeito das regras gramaticais, do que se um "ser humano" odiar outro "ser humano" a despeito de Ti. Como se qualquer inimigo pudesse ser mais perigoso que o ódio dentro dele; ou pudesse machucar mais profundamente a quem persegue do que à própria alma devido à inimizade. Certamente, ciência alguma das letras pode ser tão inata quanto o registro da consciência de que “alguém está fazendo a outro o que de outro não gostaria de receber". Quão misteriosos são Teus caminhos, ó único grande Deus, permaneces em silêncio nas alturas e, por meio da Tua infatigável Lei, outorgas o castigo da cegueira aos desejos ilícitos. Um homem, buscando a fama da eloquência, diante de um juiz humano, cercado por uma multidão humana, acusando seu inimigo com ódio intenso, será cuidadoso para que não assassine as leis gramaticais, mas não atentará para a fúria de seu espírito que o leva a assassinar um ser humano real.
CONFISSÕES
CAPÍTULO XVIII